A doutora em História e Filosofia da Educação Nereide Saviani, que desde
criança sonhava em ser professora, fala da sua trajetória e da sua relação com
a Pedagogia Histórico—Crítica ( Pedagogia de concepção Marxista) e de sua relação com o seu irmão o pedagogo
Dermeval Saviani. Nereide afirma que como toda instituição, a escola é um
espaço contraditório, reflete a luta de classes que se dá na sociedade: a luta
incessante dos trabalhadores contra a exploração e a opressão. Ela acredita que
a melhor contraposição ao ensino de concepção capitalista é o desenvolvimento
de um ensino que permita às classes trabalhadoras a apropriação dos múltiplos
elementos culturais, produzidos socialmente e monopolizados pelas classes
sociais que detêm os meios de produção.
Alexandre Lucas – Quem é Nereide Saviani?
Nereide Saviani: Brasileira, nascida em Amparo/SP, a 13
de novembro de 1947 (embora a certidão de nascimento registre 01 de dezembro).
Nona filha de um casal de lavradores no interior de São Paulo, transferido para
a Capital em setembro de 1948. Professora Normalista. Pedagoga. Mestra em
Supervisão e Currículo. Doutora em História e Filosofia da Educação. Diretora
da Escola Nacional João Amazonas. Diretora de Formação da Fundação Maurício
Grabois. Militante e dirigente do Partido Comunista do Brasil – PCdoB.
Alexandre Lucas – Fale da sua trajetória pedagógica?
Nereide Saviani: Desde criança, sonhava ser professora.
No período de 1964 a 1966, fiz o Curso Normal – formação de professores (as) do
então curso primário – no Colégio Nossa Senhora do Sagrado Coração, em Vila
Formosa, Zona Leste de São Paulo, Capital. Fui alfabetizadora de crianças e jovens/adultos,
em escolas públicas e no MEB – Movimento de Educação de Base (1967-1970). Fiz o
Curso de Pedagogia na PUC-SP (1969-1972). Lecionei nas quatro primeiras séries
do então Ensino de 1º Grau, na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da
USP (1971-1975). Fui Supervisora de Cursos e Assessora Pedagógica no então
MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização, depois EJA – Educação de Jovens
e Adultos, na Prefeitura do Município de São Paulo (1975-1989). Fiz o Mestrado
em Supervisão e Currículo na PUC-SP (1975-1981), com a defesa da
Dissertação: Função Técnica e Função Política do Supervisor em Educação.
E o Doutorado em História e Filosofia da Educação (1989-1993), com a defesa da
Tese: Saber Escolar, Currículo e Didática – problemas da unidade
conteúdo/método no ensino. Lecionei em cursos superiores da área da
Educação (Pedagogia e Licenciaturas), assumindo disciplinas como: História da
Educação Brasileira; Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1º e 2º Graus;
Didática e Prática Pedagógica; Currículo e Avaliação. Atuei como
docente-pesquisadora e orientadora nos Programas de Pós-Graduação em Educação:
História e Filosofia da Educação (depois denominado História, Política,
Sociedade) – mestrado e doutorado, na PUC-SP (1994-2001); Mestrado em Educação,
na Universidade Católica de Santos – UNISANTOS (2002-2009), quando me aposentei
das atividades acadêmicas regulares. Desde 2003, atuo na direção da Fundação
Maurício Grabois e dirijo a escola de formação teórica e política do PCdoB.
Alexandre Lucas – Você escreveu o livro Saber
escolar, currículo e didática. Qual a importância desse estudo para
a compreensão da escola no capitalismo?
Nereide Saviani: O livro foi publicado em 1994 e está na
sexta edição (a 2ª edição é de 1998, a 3ª de 2000, a 4ª de 2003, a 5ª de 2006 e
a atual, de 2010). Ele corresponde ao texto da tese de doutorado, com alterações
para fins editoriais, atualizações em prefácios e algumas revisões. Nele,
sistematizo obras sobre currículo e trabalho pedagógico que, de alguma forma,
versam sobre a relação entre as disciplinas escolares e os saberes de
referência (as ciências, por exemplo). Defendo a tese de que é preciso
organizar o currículo e os programas dos componentes curriculares de modo a
aproximar os conteúdos do ensino aos conteúdos das diversas áreas do saber
elaborado, partindo da concepção de currículo como seleção de elementos da
cultura e sua seleção e organização para fins de ensino e aprendizagem em
situações escolares. Constituindo-se numa espécie de “mapeamento” de enfoques que
constam de produções sobre currículo e didática, o livro tem interessado a
professores(as) que atuam na educação básica ou superior, a estudantes de
graduação e pós-graduação, a pesquisadores(as) sobre formação docente e
políticas educacionais. Também é constantemente procurado por profissionais da
educação que atuam com elaboração e implementação curriculares, assessoria a
redes de ensino e programas de formação de educadores(as). Aliás, tenho
recebido retornos de leitores(as), que me informam tê-lo trabalhado em diversas
situações, das quais se destacam: programas de formação inicial e continuada de
professores para o ensino básico e de especialistas em Educação; disciplinas de
cursos de Graduação e Pós-graduação; grupos de estudo sobre questões
pedagógicas; definição de referencial teórico para pesquisas em Iniciação Científica
e em Mestrado/Doutorado em Educação. Em todos esses casos, a principal
finalidade apontada é reunir enfoques sobre currículo e elaboração curricular e
sua escolha é justificada por “ajudar a organizar ideias sobre o tema”, na
medida em que sistematiza elementos constitutivos do saber escolar, fornecendo
pistas para o exame de outras obras da área.
AlexandreLucas – A Pedagogia Histórico-Critica e a Pedagogia
Libertadora são duas concepções progressistas de educação. Quais os
pontos divergentes dessas concepções?
Nereide Saviani: São concepções críticas de educação,
escola e sociedade. A primeira, declaradamente de inspiração marxista, tem na
produção de Dermeval Saviani o principal referencial para a análise da educação
brasileira e perspectivas de sua transformação. A segunda, que não se define como
marxista, tem como foco a Educação Popular, cujo maior expoente é Paulo Freire.
Ambas dirigem suas reflexões e propostas para a democratização da educação
brasileira, numa sociedade cujas contradições antagônicas precisam ser superadas
revolucionariamente. Apresentam, em comum, a crítica à visão ingênua que
considera possível a transformação da sociedade pela ação da educação escolar,
concebendo-a, ao contrário, como determinada socialmente. Paulo Freire teve
influência marcante na formação de toda uma geração de educadores progressistas
que, nos anos de 1960 e durante todo o período da ditadura militar no Brasil,
resistiram à visão autoritária, elitista, da educação dominante. Exilado pouco
tempo depois do Golpe de1964, seguiu produzindo em outros países do então
“terceiro mundo”, com repercussão até mesmo entre progressistas das grandes potências.
Educadores que aqui ficaram assumiram o risco de trabalhar com sua proposta de
alfabetização de adultos e disseminar suas ideias, em grupos clandestinos e,
habilmente, até mesmo em cursos de ensino médio e superior. A orientação de
estudo e o debate de seus livros Educação como Prática da
Liberdade e Pedagogia do Oprimido, eram, em si, um exercício
vivo de resistência e uma vivência prática da educação conscientizadora que o
Autor preconizava. A tônica dessa produção era a crítica à escola como
reprodutora da exploração e da opressão características da sociedade
capitalista. Contra ela, propunha-se a conscientização dos trabalhadores,
entendendo-se, porém, que isto somente seria possível pela ação alternativa de grupos
e organizações não geridos pelo sistema escolar – este inexoravelmente limitado
e submetido aos interesses dominantes. Tratava-se de uma análise dialética das
contradições sociais e da necessidade de sua superação. Dialética hegeliana– eu
diria – com foco nas questões da consciência e do diálogo, derivando-se, disso,
a opção pelo método dialógico. Segundo D. Saviani, a proposta pedagógica
de Paulo Freire tem os traços da Escola Nova, ou melhor, Escola Nova
Popular. Dermeval Saviani foi daqueles educadores que, no período mais
ferrenho daditadura, procuraram cavar brechas para estudar, desenvolver e
difundir uma concepção crítica de educação que apontasse perspectivas para o
Brasil. Professor de Filosofia da Educação na PUC-SP, os citados livros de Paulo
Freire faziam parte da bibliografia da disciplina, ao lado de autores
progressistas, nacionais e estrangeiros. A tônica da produção que fazia a
crítica da escola capitalista era a constatação/denúncia de seu atrelamento aos
interesses burgueses e de seu caráter de reprodução das relações de exploração
e opressão predominantes na sociedade. A redução da análise a tal determinação
provocava inquietações, na medida em que deixava sem saída a educação escolar e
tornava sem sentido a própria formação de educadores. Como filósofo, aprendera que
a unidade e luta dos contrários, no movimento quantidade-qualidade, tende à superação
(negação da
negação), o que o levou a direcionar suas reflexões para o caráter das
contradições inerentes às relações escolares e quais, tendencialmente, seriam
suas possíveis saídas. Foi na dialética materialista, nos estudos marxistas,
que encontrou elementos para discutir a educação a partir do conceito de luta
de classes: se a escola reproduz as relações predominantes na sociedade
capitalista, comporta também a luta entre interesses dos dominantes e dos
dominados. De acordo com o materialismo histórico, a contradição principal do capitalismo
– burguesia x proletariado (capital x trabalho) – se expressa na produção
social x apropriação privada. E isto acontece tanto na produção material como
na imaterial (conhecimentos, valores, artes, crenças etc). Por conseguinte, uma
possibilidade de a educação escolar atender aos interesses dos dominados seria um
sério trabalho pedagógico que lhes permitisse apropriar-se dos saberes
produzidos pela humanidade e acumulados e transformados socialmente, mas
monopolizados pelos dominantes. Daí sua proposta pedagógica ter por foco a
recuperação do conteúdo de ensino (ciências, literatura, artes, técnicas etc) que
teria sido desconsiderado, submetido a técnicas, procedimentos, recursos, na
falsa contradição conteúdo x método, expressa na “disputa” escola tradicional x
escola nova e suas diversas contradições (tais como ensino x aprendizagem,
professor x aluno, autoridade x liberdade...). Para a Pedagogia
Histórico-Crítica, não se trata de optar entre um ou outro elemento dessas
oposições, mas de concebê-los em movimento (unidade e luta) num mesmo processo:
o trabalho pedagógico.
Alexandre Lucas – O que seria uma pedagogia de cunho socialista?
Nereide Saviani: A base da concepção socialista de
educação é o materialismo histórico. Em Marx, os seres humanos se educam no e
pelo trabalho, enquanto prática social consciente, na relação com a natureza e
entre si, para a produção social da existência. A escola, construção histórica,
é instrumento de educação, que deve contribuir para a formação integral do ser
humano, permitindo-lhe o acesso aos múltiplos aspectos culturais,
historicamente produzidos. Uma pedagogia de cunho socialista concebe o
trabalho como princípio educativo e, aliados a ele: a apropriação
crítica e criativa dos conhecimentos acumulados pela humanidade como imperativo
para a emancipação dos trabalhadores; a escola como instrumento de educação da
personalidade humana; o papel da educação escolar na formação multifacética das
jovens gerações; a mesma educação para ambos os sexos; o trabalho como eixo central
dos conteúdos e das atividades escolares, implicando a necessária relação entre
ensino geral e politécnico. São suas principais premissas:
- a educação, no sentido amplo, como manifestação específica da ação
social do ser humano e voltada para a formação da personalidade em seus
múltiplos aspectos;
- a educação como fenômeno social historicamente determinado,
compreendendo relações sociais e formas de comportamento social, imbuídos de
caráter de classe;
- a educação como relacionada diretamente com a prática e com o
conhecimento dessa prática e, portanto, necessariamente vinculada com o
trabalho;
- a educação escolar como manifestação da educação no sentido amplo,
constituindo-se numa esfera especial da atividade humana e tendo como campo
principal o ensino;
- o caráter científico do ensino (processo consciente, deliberado,
sistemático e metódico) e seu caráter de classe;
- a consideração, na organização do ensino, das transformações ocorridas
na produção científica e técnica;
- a formação do pensamento científico como requisito fundamental para
colocar as gerações atuais no nível de nossa época e a educação escolar como
principal responsável por essa tarefa.
Alexandre Lucas – Qual a sua ligação com a pedagogia de Dermeval Saviani?
Nereide Saviani: Bem, a quem não sabe, informo que
Dermeval e eu somos irmãos. Claro que isso não implica, necessariamente,
afinidade de pensamento e de opção por área de estudo e de atuação. Como afirmei
na resposta à segunda questão, meu interesse pela educação escolar acompanhou-me
desde a infância, no desejo, realizado, de ser professora. Dermeval foi para o
Seminário aos onze anos de idade (eu tinha sete), voltando ao convívio da
família cerca de dez anos depois – quando eu já frequentava o Curso Normal.
Desde então, nossa relação mais próxima foi decisiva na minha formação, não
tanto em termos de posições sobre a educação, mas em termos de análise crítica
da sociedade. Anos de 1960. Eu estudava num colégio religioso, em que as
freiras interpretavam o golpe militar como movimento necessário para salvar o
país do comunismo. Em casa, o pai – não muito religioso – reforçava essa ideia,
enquanto os irmãos mais velhos a retrucavam (no discurso e na prática de
metalúrgicos, sindicalistas), e tinham o apoio da mãe – católica praticante –
haja contradição! Dermeval havia iniciado a Faculdade de Filosofia e, ao sair
do Seminário, prosseguiu nesse estudo, já na PUC-SP, passando também a atuar no
movimento estudantil. Nossas discussões me armavam para entender a contradição
e enfrentar ou pelo menos descartar os argumentos pró-golpe e similares.
Quando, já formada professora e exercendo o magistério, ingressei no curso de Pedagogia,
na PUC-SP, ele já era professor de Filosofia da Educação e fui sua aluna. Com
ele e com professores de outras disciplinas (como História da Educação,
Sociologia Educacional e Psicologia Social), pude aprofundar minha visão
crítica de sociedade, educação e escola. Tive contato com autores progressistas
(Paulo Freire entre eles). O marxismo presente, mas de modo subjacente (por
razões óbvias). De modo explícito, me foi apresentado em um grupo de estudo, reunido
clandestinamente. Formada pedagoga, segui meu caminho com relativa
independência, interessando-me particularmente por questões curriculares e
didáticas, na condição de coordenadora pedagógica, cujos desafios concretos me
chamavam a reflexões mais amplas e elaborações mais profundas – possibilitadas
pela análise materialista histórica da educação escolar. Essa é a minha ligação
coma a Pedagogia Histórico-Crítica.
Alexandre Lucas – Recursos públicos e democracia tornam a escola
progressista?
Nereide Saviani: : Entendo que escola progressista é,
necessariamente, democrática, pois deve ser pública, gratuita,universal
e laica e atender aos seguintes princípios:
- garantir a trabalhadores e trabalhadoras ampla oportunidade de acesso
e permanência, em todos os níveis;
- oferecer-lhes ensino de boa qualidade – socialmente referenciada– concretamente
definida segundo as necessidades sociais, desenvolvendo o saber científico, a
consciência crítica, o saber gestionário;
- assegurar a efetiva participação de estudantes, educadores e comunidade
na gestão das instituições e nos órgãos de decisão sobre o ensino.
E tem por pilares básicos: a valorização dos profissionais da educação;
o acompanhamento dos avanços da sua época.
Isto, evidentemente, exige recursos públicos, geridos com competência e
transparência. E destinados exclusivamente ao ensino público.
Por conseguinte, escola progressista o é por ser essencialmente
democrática e assim se mantém ao contar com recursos públicos – resultado do
trabalho social, que retorna, por direito, aos trabalhadores, como dever do
Estado.
Em suma, democracia e recursos públicos, mais que tornar a escola
progressista, são inerentes a ela.
Alexandre Lucas – A escola é um espaço aonde as diversas concepções
pedagógicas conservadoras e progressistas entram em conflito. O que isto
ocasiona?
Nereide Saviani: Como toda instituição, a escola é um
espaço contraditório, reflete a luta de classes que se dá na sociedade: a luta
incessante dos trabalhadores contra a exploração e a opressão. Numa escola democrática,
essa luta não deve ser camuflada, mas explicitada, com o desvendamento de suas origens
e de sua configuração atual e com a reflexão sobre como se dá a exploração e
sobre perspectivas de sua superação. Ademais, o conhecimento se forma e se
consolida no confronto entre diferentes análises e interpretações dos fenômenos
(naturais, sociais, psíquicos) e sua contextualização no tempo e no espaço. O
contato com posições opostas, longe de ser um problema, é, para estudantes e
docentes, uma oportunidade de aprofundar a capacidade de análise, aprimorar a argumentação,
enfim, desenvolver o pensamento crítico. Obviamente, para que isto aconteça o ensino
deve primar pelo espírito de pesquisa, num clima democrático, sem dogmatismos.
Alexandre Lucas – A luta sindical dos professores ainda é uma luta
economicista?
Nereide Saviani: A luta econômica é da natureza da ação
sindical dos trabalhadores, por ter como principal objetivo a conquista de
melhores condições de trabalho, salário, jornada etc. Ela se torna economicista
quando se restringe a negociar um preço melhor para a força de trabalho, desvinculando-se
da luta política e ideológica, sem situar a categoria no contexto da luta geral
dos trabalhadores, ignorando as múltiplas determinações da vida cotidiana e os
movimentos por avanços no país e seu desenvolvimento soberano, democrático e
com justiça social. Quando se fala em luta sindical dos professores (e de
outras categorias de trabalhadores), é preciso diferenciar as tendências de
direção dessa luta (discurso e prática) das respostas dadas pela categoria.
Temos visto, no caso brasileiro, Centrais Sindicais, Confederações, Federações
e Sindicatos cujas direções aliam interesses trabalhistas específicos a
interesses nacionais, com ações concretas e mobilização das massas
trabalhadoras. E também entidades dessas que primam pelo imediatismo da(s) categoria(s)
e, quando ampliam a pauta, o fazem alinhando-se a interesses do capital. Em
ambos os casos, as direções têm respostas de apoio ou rejeição, porque na luta
dos trabalhadores disputam
diversas forças, representando diferentes interesses. Isso vale também para
a luta sindical específica dos professores. Assim, minha resposta (dialética) a
essa questão é: sim e não.
Alexandre Lucas – É possível se contrapor ao ensino de concepção
capitalista?
Nereide Saviani: Primeiramente, é preciso definir o que
é esse ensino de concepção capitalista: um ensino escalonado, que se abre aos
trabalhadores somente na medida das necessidades de inculcação dos valores
dominantes e de formação da força de trabalho. Um ensino regido pela lógica do
mercado (ainda assim – como diria Adam Smith – em doses homeopáticas): formação
elementar a uma maioria – empregável – para execução de tarefas simples;
formação técnica razoavelmente qualificada para outros; formação tecnológica
mais avançada para pouquíssimos. Para a elite, formação científica de alto
nível, com vistas a formar os dirigentes (empresariais e políticos) e/ou seus
prepostos.
Entendo que a contraposição a isso se dá ao nível da luta social mais
geral pela superação da exploração capitalista, realizável em outro tipo de
sociedade, que, no entanto, precisa ser gestada desde já: nos marcos do velho
regime, criando-se as condições para o nascimento do novo. A luta pela
democratização da educação, inserindo-se na luta pela democratização da
sociedade em seu conjunto, implica batalhar por conquistas as mais diversas, na
perspectiva de construção de uma escola necessariamente mantida pelo Estado e
às suas expensas, mas sob o controle e a fiscalização da população organizada.
Uma escola que persiga o objetivo de formação integral: o domínio, não só dos
conhecimentos, mas também da atividade criadora, dos hábitos, habilidades,
atitudes, nos aspectos físico, mental e afetivo. Isto supõe educação básica e
geral, formação ampla, científica, literária, artística, ética, acompanhando o
avanço científico-tecnológico e com base nas práticas sociais concretas.
No que diz respeito ao trabalho pedagógico propriamente dito, penso que
a melhor contraposição ao ensino de concepção capitalista é o desenvolvimento
de um ensino que permita às classes trabalhadoras a apropriação dos múltiplos
elementos culturais, produzidos socialmente e monopolizados pelas classes
sociais que detêm os meios de produção. Eu enfatizaria o acesso aos núcleos
básicos das ciências. Tanto das ciências naturais (que ajudam
a compreender o desenvolvimento do universo, a origem da vida, a evolução
humana, as leis que regem o desenvolvimento da indústria moderna e da alta
tecnologia contemporânea). Como das ciências sociais (que
ajudam a compreender como os homens se relacionam entre si e com a natureza, as
peculiaridades dos processos produtivos, como se dá a divisão do trabalho, a
repartição dos bens produzidos, como se formam e se consolidam os sistemas de
normas e valores, sob quais formas os homens se organizam na defesa de seus
interesses, como se dão as relações de poder...). E, ainda, as ciências do
pensamento (que ajudam a compreender como o indivíduo se apropria da
cultura humana, como se desenvolvem a subjetividade, a criatividade, a
criticidade).
Aí, ganha maior importância a luta dos professores por escolas mais
equipadas, reformulações curriculares, melhores oportunidades de formação
continuada, condições de trabalho e jornada, aumento de salário. Então,
voltando à questão anterior: ainda que essa luta tenha por motivação imediata a
melhoria das condições da vida pessoal/familiar, acaba por não se tornar uma
luta meramente economicista. Cabe às entidades sindicais o papel de explicitar
o caráter político- ideológico dessa luta, ressaltando a sua necessária ligação
com as lutas mais amplas.
Alexandre Lucas – Quais os principais desafios da educação brasileira?
Nereide Saviani: Em 2001 fui convidada a falar a
estudantes de Pedagogia sobre os desafios da educaçãobrasileira para o século
XXI. Comecei dizendo que o principal desafio era atingir os objetivos postos ao
mundo desenvolvido para a educação no século XIX. O principal deles, a
construção de um Sistema Nacional de Educação, necessário ao
enfrentamento de outros, como: a erradicação do analfabetismo (hoje acrescido
do enfrentamento ao analfabetismo funcional); a universalização do
ensino elementar (no século XX, estendido para o ensino fundamental); ensino
médio de sólida
formação geral e técnico-científica (no Brasil, predominou o profissionalizante
tipo adestramento); a criação de universidades públicas (no Brasil, o superior
se expandiu quase que exclusivamente pela iniciativa privada); a formação de
pesquisadores de alto nível (no Brasil, a pós-graduação se instaurou nos anos
1970 e carecia de maiores incentivos).
Com a eleição de Lula, em 2002, e de Dilma, em 2010, pode-se dizer que –
considerando-se o atraso de séculos – muito se caminhou em direção a esses
objetivos. Porém, há ainda muito a se conquistar. O Sistema Nacional de
Educação voltou ao debate, tendo sido tema central das Conferências Nacionais
de Educação (CONAEs), mas sua construção permanece um grande desafio para que
os demais sejam enfrentados e superados. Acabamos de conseguir a aprovação de
um Plano Nacional de Educação (PNE) avançado, que estabelece recursos para a
educação na ordem de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) nacional: uma luta que
perdura desde as duas últimas décadas do século XX – e isso tende a elevar a um
novo patamar a educação das jovens gerações, na perspectiva democrática da
escola progressista. Outro grande desafio, portanto, é o estabelecimento de
canais e mecanismos (com participação social) de fiscalização e controle da
efetiva aplicação desses recursos a ações necessariamente educacionais e
exclusivamente à escola pública.
A superação desses desafios é necessária para o atingimento de objetivos
históricos:
- Garantia de educação de qualidade, pública, gratuita, obrigatória,
universal e laica em todos os níveis: ampliação das
oportunidades, aos trabalhadores, de ingresso (e permanência) em escolas básicas
e universidades públicas; participação dos trabalhadores e suas organizações
na gestão democrática das instituições educacionais e nos órgãos de decisão
sobre a educação, em todas as esferas administrativas e em todos os níveis e
ramos de ensino; erradicação do analfabetismo.
- ações de emergência junto a adolescentes, jovens e adultos que não tiveram
acesso à escola ou dela se evadiram precocemente e compromisso com a manutenção
e desenvolvimento de um ensino de qualidade às crianças; enfrentamento do analfabetismo
funcional; ampliação do acesso aos níveis superiores de ensino.
- Reorganização dos currículos, atendendo às necessidades sociais e
acompanhando o avanço técnico-científico contemporâneo – de modo a garantir uma
formação profissional integrada a uma sólida formação geral, na relação entre a
escola, o trabalho e as práticas sociais: condizente com a luta pela
emancipação das mulheres, a luta antirracista e pela igualdade racial, o
combate a toda manifestação de discriminação e preconceito, o respeito à livre
orientação sexual, o atendimento às necessidades especiais.
- Valorização dos profissionais da educação: formação, plano de carreira,
condições de trabalho; estabilidade das equipes escolares – com jornada e
salário que permitam a permanência dos professores numa única escola.
- Regulamentação e fiscalização do ensino privado – normatização das
relações trabalhistas e pedagógicas; combate à mercantilização e à especulação
financeira.
No entanto, não se pode perder de vista o desafio maior, de instituir
no país um novo ciclo de crescimento, em novas bases: recuperação do
desenvolvimento, com distribuição de renda. Isto exige mudanças de base na
sociedade e implica a realização de reformas estruturais (reforma política, dos
meios de comunicação, do judiciário, tributária, agrária, urbana, da saúde, da
segurança pública e, é claro, da educação). Tal desafio é parte essencial da
construção de um novo projeto nacional de desenvolvimento, com
valorização do trabalho.
Por fim, não posso deixar de apontar desafios que considero cruciais
para a luta sindical dos professores: continuar lutando pelas mudanças, com
mobilização para a pressão no sentido de fazer valer as perspectivas mais
avançadas; participação nas lutas imediatas, com visão de mais longo alcance
(mudança estrutural da sociedade); união de forças e ampliação das pautas, para
além das questões educacionais – tendo por eixo a redução da jornada de
trabalho sem redução de salário – o que supõe articulação das organizações
educacionais: com as organizações operárias e de outras categorias de trabalhadores;
com partidos e outras entidades da sociedade civil.